O caso Bolsonaro não é só um indiciamento, mas um teste crucial para os pilares democráticos e para a confiança no Estado de Direito no Brasil.
*Por João Renato
O indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de outras 36 pessoas pela Polícia Federal na última quinta-feira (21) levanta questões que vão além das acusações de crimes como golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Com uma possível pena de até 28 anos, o caso representa não apenas um teste para o sistema judicial brasileiro, mas também para a própria essência da democracia e do Estado de Direito.
Bolsonaro e seus aliados, incluindo o general Braga Netto, enfrentam acusações graves, incluindo o suposto planejamento de atos contra a vida de líderes políticos e magistrados do Supremo Tribunal Federal (STF). A Polícia Federal fundamentou a Operação Contragolpe em documentos que sugerem ações coordenadas no Palácio do Planalto. Contudo, muitos juristas e defensores da democracia alertam para os riscos de se usar o aparato judicial de forma politizada, questionando a imparcialidade do processo.
A Justiça em Xeque
A condução do caso pelo ministro Alexandre de Moraes, ele próprio um dos alvos alegados do plano, tem gerado intensos debates. Moraes é acusado de atuar com parcialidade, minando a confiança no sistema judicial brasileiro. Para muitos, a simples presença do magistrado na relatoria do caso representa um conflito de interesse.
“É fundamental que a Justiça não apenas seja imparcial, mas pareça ser imparcial. Nesse caso, o ideal seria que outro ministro assumisse o julgamento”, defende um renomado jurista ouvido pela reportagem e que pediu para não ser citado. “Essa troca de relator não seria apenas uma questão de legalidade, mas um sinal de respeito aos princípios democráticos”, complementa.
Bolsonaro, por sua vez, questiona abertamente as acusações. Em tom irônico, desafiou a lógica por trás das investigações: “Vai dar golpe com um general da reserva e quatro oficiais? Cadê a tropa? Cadê as Forças Armadas?”, disse em uma live. Ele também criticou o que chama de “criativa” a narrativa da Polícia Federal, apontando inconsistências nas evidências apresentadas, como, por exemplo, a alegação de que o golpe de Estado seria realizado com o uso de um táxi. Para Bolsonaro, isso seria absurdo, já que tais ações exigiriam meios como tanques de guerra.
O Contexto Político
Não se pode ignorar o pano de fundo político do caso. A polarização no Brasil tem transformado disputas jurídicas em batalhas ideológicas. A ideia de que Bolsonaro enfrenta um tratamento desigual, comparado a figuras políticas de outras ideologias, fortalece a narrativa de seus apoiadores de que há uma “caça às bruxas” contra o ex-presidente.
Seja qual for o veredito, é essencial que o processo respeite rigorosamente os princípios constitucionais. Qualquer indício de perseguição política não apenas enfraquece a credibilidade do julgamento, mas também alimenta divisões já profundas na sociedade brasileira.
Como os Novos Tipos Penais Podem Redefinir o Caso Bolsonaro
A análise técnica dos dispositivos possivelmente aplicados, especialmente à luz das interpretações jurídicas contemporâneas, evidencia desafios e riscos de má aplicação da lei penal. De acordo com o professor Fillipe Azevedo Rodrigues, em seu recente ensaio (https://www.instagram.com/p/DCz61eqSY_5/?igsh=MXA1Ym0xdGx2MnJlMA==), a revogação da antiga Lei de Segurança Nacional (LSN) e sua substituição pelos artigos 359-I a 359-T do Código Penal trouxe restrições significativas ao poder punitivo do Estado. Essas mudanças foram deliberadamente inspiradas por valores democráticos, para evitar a utilização do direito penal como ferramenta de perseguição política sob o pretexto de proteger as instituições democráticas.
Os Tipos Penais em Questão
Entre os crimes imputados a Bolsonaro, conforme matéria de ‘O Globo’, destacam-se:
- Golpe de Estado (art. 359-M): Requer, para sua configuração, a tentativa de depor o governo legitimamente constituído, por meio de violência ou grave ameaça. Segundo Rodrigues, não basta uma mera organização ou planos abstratos; é necessária uma violência suficientemente grave para expor o governo a um perigo concreto de ser deposto.
- Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito (art. 359-L): Trata-se de um tipo penal que demanda um efetivo comprometimento do funcionamento dos poderes constitucionais. A interpretação exige que a ameaça seja concreta e que as ações pratiquem um ataque ofensivo direto às instituições.
- Organização Criminosa (art. 2º da Lei 12.850/2013): Este crime exige que o objetivo do grupo seja a prática de crimes em número e tempo indeterminados, o que, segundo o autor, não se confunde com ações pontuais, por mais sofisticadas que sejam, como as descritas pela PF.
Elementos de Atipicidade e Excesso Punitivo
Rodrigues enfatiza que atos preparatórios, em regra, não são puníveis, a menos que haja uma tipificação expressa nesse sentido, o que deixou de existir com a revogação, em 2021, do art. 16 da LSN, sem deixar um substituto correspondente. Assim, a interpretação dos novos tipos penais deve observar os limites da lei, evitando que a acusação se baseie em conjecturas ou planos interrompidos antes de qualquer concretude criminosa.
Isso se torna ainda mais sensível quando os próprios julgadores figuram como potenciais vítimas do caso, como no caso do ministro Alexandre de Moraes. Para Rodrigues, situações como essa comprometem a clareza necessária para a tomada de decisões judiciais equilibradas, especialmente quando a percepção de imparcialidade é questionada.
Um Chamado à Justiça
Independentemente de opiniões políticas, o Brasil precisa de um Judiciário que sirva como pilar da democracia, aplicando a lei com equidade e transparência. O indiciamento de Jair Bolsonaro, a ser confirmado ou rejeitado pelo STF, deve ser conduzido com serenidade e respeito ao devido processo legal. Apenas assim será possível garantir que a Justiça seja feita sem que a democracia sofra mais abalos.
A história nos ensina que um Estado de Direito forte não persegue adversários, mas busca a verdade com base em provas robustas e processos claros. O Brasil, em um momento delicado de sua trajetória democrática, merece nada menos do que isso.
* João Renato B. Abreu, Policial Penal – DF, mestre em direito e políticas públicas, pós-graduado em direito penal e controle social, coordenador do NISP – Novas Ideias em Segurança Pública, faixa preta de jiu jitsu e autor do livro: Plea Bragaining?! Debate legislativo – Procedimento abreviado pelo acordo de culpa.
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