Quando o Livre Arbítrio é Apenas uma Ilusão Bem Programada

 

*Por Marcelo Senise

Algoritmos estão moldando suas escolhas, manipulando suas emoções e silenciosamente redesenhando a democracia.

Vivemos imersos em uma arquitetura invisível, silenciosa e onipresente: os algoritmos. Eles não apenas organizam a informação, como muitos ainda pensam — eles nos organizam. Organizam nosso tempo, nossos desejos, nossas relações e, cada vez mais, nossas crenças. Em nome da eficiência, da personalização e da conveniência, estamos abrindo mão do que há de mais essencial em nossa humanidade: a autonomia de pensar, sentir e decidir por nós mesmos.

Não é exagero dizer que estamos assistindo à ascensão de uma nova forma de poder — não mais vertical e autoritária, mas horizontal, sedutora e automatizada. Um poder que não manda, mas conduz. Não censura, mas anestesia. A inteligência artificial e os algoritmos não estão apenas analisando nossos comportamentos; eles estão moldando-os com uma precisão cirúrgica. E o mais perturbador: nós colaboramos com isso, todos os dias, alimentando a máquina com cada clique, cada curtida, cada segundo de atenção.

A promessa de que a tecnologia nos libertaria da ignorância e do esforço está se revelando uma armadilha sofisticada. Quanto mais hiperconectados, mais vulneráveis. Quanto mais informação, menos reflexão. As redes sociais, as plataformas de streaming, os mecanismos de busca — todos operam com o mesmo princípio: prever o nosso próximo passo com base no que já fomos. Somos empurrados para dentro de bolhas que reforçam o que acreditamos, evitam o desconforto da discordância e tornam o pensamento crítico quase obsoleto. O futuro, nesse cenário, é apenas uma repetição estatística do passado.

O resultado é uma sociedade que se move como cardumes digitais, onde decisões coletivas emergem não da razão pública ou do debate democrático, mas da soma de impulsos mediados por algoritmos. O que parecia ser apenas uma questão de consumo — que produto você prefere, que vídeo você quer assistir — se torna uma questão existencial e política. Quando a informação que você consome é filtrada, ordenada e customizada para maximizar sua permanência em uma plataforma, a verdade deixa de ser uma busca e passa a ser uma construção algorítmica. A realidade, então, é editada.

Mas não é apenas a liberdade de pensamento que está em risco — é a própria noção de humanidade. A inteligência artificial, ao aprender com nossos dados, aprende também os nossos vícios, nossos preconceitos, nossas limitações. E os replica em escala. Ela não é neutra, nunca foi. Seu funcionamento reflete interesses econômicos e estruturas de poder. Plataformas que parecem gratuitas cobram um preço altíssimo: a mercantilização da atenção, da emoção e da identidade.

Diante desse cenário, não basta exigir transparência ou melhores políticas de privacidade. Precisamos de um novo pacto ético com a tecnologia. Um pacto que resgate o valor da dúvida, da pausa, da experiência não-mediada. Um pacto que nos devolva a capacidade de contemplar, de escolher, de errar — e de resistir. Porque a resistência, neste novo século, não virá apenas nas ruas, mas nas decisões silenciosas do cotidiano: o que lemos, o que clicamos, o que ignoramos. A resistência será desligar o automático e retomar o controle da própria consciência.

A pergunta urgente que devemos fazer não é “o que os algoritmos podem fazer por nós?”, mas “o que eles estão fazendo de nós?”. Se não formos capazes de encarar essa questão com coragem e lucidez, estaremos trocando nossa liberdade por conforto, nossa autonomia por previsibilidade — e nossa humanidade por uma versão estatisticamente eficiente de nós mesmos.

Ainda é tempo de reverter esse processo. Mas, para isso, precisamos deixar de ser apenas usuários de tecnologia e nos tornarmos agentes conscientes de um novo humanismo digital. Um humanismo que compreenda a complexidade do nosso tempo sem ceder à sedução do controle total. Um humanismo que recuse ser governado por modelos matemáticos que não compreendem o que é sonhar, amar ou duvidar.

Porque o futuro — ao contrário do que os algoritmos querem prever — ainda pode ser surpresa.

 

 

 

Marcelo Senise – Presidente do IRIA – Instituto Brasileiro para a Regulamentação da Inteligência Artificial, Sócio Fundador da Social Play e CEO da CONECT I.A, Sociólogo e Marqueteiro, atua há 37 anos na área política e eleitoral, especialista em comportamento humano, e em informação e contrainformação, precursor do sistema de análise em sistemas emergentes e Inteligência Artificial. Twitter: @SeniseBSB / Instagram: @marcelosenise

 

 

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