O Estado de Direito só vale para alguns?

No premiado filme O Mauritano, a advogada Nancy Hollander defende, de graça, um homem preso por suspeita de terrorismo em Guantánamo. Não por simpatia, mas por princípio: se o devido processo legal não valer para o pior inimigo, logo não valerá para ninguém. O homem foi torturado, mantido sem julgamento por anos e, ao fim, considerado inocente.

O paralelo com o Brasil de hoje é inevitável.

Onde tudo começou

A erosão do Estado de Direito não começou com Lula. Um marco importante foi a prisão do senador Delcídio do Amaral, ainda no exercício do mandato, em 2015. Pela primeira vez desde a redemocratização, um parlamentar com foro privilegiado foi preso sem flagrante e sem condenação definitiva, em decisão monocrática. O Senado, que deveria defender suas prerrogativas, se curvou ao clima de comoção pública.

Dali em diante, criou-se o precedente: a lei pode ser relativizada se a narrativa justificar.

O caso Lula e a relativização das leis

Em 2018, o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi preso às vésperas da eleição, liderando as pesquisas. A decisão foi juridicamente questionável, politicamente conveniente e assistida em silêncio por parte do STF. Anos depois, os processos foram anulados por uma “tecnicalidade” de competência, sem que o mérito fosse analisado. Resultado: Lula voltou à presidência, e o recado ficou claro: “com a gente, você é presidente; sem a gente, é presidiário.”

Não se trata de discutir culpa ou inocência, até porque ficou comprovado a roubalheira pela operação lava-jato, mas de reconhecer que o sistema de Justiça está sendo instrumentalizado conforme o interesse político de momento.

E agora, os opositores

No extremo oposto do espectro, vemos casos como o de Débora “do Batom”, condenada a 14 anos de prisão por uma suposta tentativa de golpe de Estado. Não estava armada. Não liderava grupo algum. Não conspirou com militares, nem teve acesso a qualquer instância de poder. Sua condenação parece mais uma mensagem de intimidação do que um exercício real de justiça.

É o mesmo princípio do hijab no Irã: não é sobre cobrir o cabelo, é sobre mostrar que o Estado pode esmagar quem quiser, quando quiser. Débora virou o recado.

Segue a lógica da repressão simbólica: não é sobre o que você fez, mas sobre o que você representa.

A concentração de poder e o silêncio dos demais

Parte do problema institucional no Brasil atual é a concentração excessiva de poder em algumas figuras do Judiciário, especialmente no Supremo Tribunal Federal. Medidas como prisões preventivas indefinidas, censura de conteúdos, investigações sem contraditório e decisões monocráticas vêm se acumulando em um ambiente onde a crítica ao sistema passou a ser confundida com ameaça à democracia.

Esse cenário foi, inclusive, apontado por veículos internacionais, como a revista The Economist, que alertou para os riscos da concentração de poder no STF. A crítica não é à figura individual de um ministro, até porque não podemos criticar, mas ao desequilíbrio entre os Poderes, que fragiliza o próprio Estado de Direito.

O perigo da normalização

A democracia brasileira já viveu momentos sombrios. Sabemos onde o autoritarismo começa, mas nunca onde termina. Quando o direito deixa de ser universal e passa a ser negociado conforme o lado político, o cidadão comum deixa de estar protegido.

E o mais grave: parte da população aplaude. Porque acha que a perseguição será sempre contra “os outros”. Mas o que o filme, a história e a Constituição ensinam é o oposto: quando a lei vira instrumento de vingança, ninguém está seguro.

Hoje é com o adversário. Amanhã pode ser com você.

A pergunta que resta é:

Vamos continuar fingindo que isso é normal?

João Renato B. Abreu, Policial Penal – DF, mestre em direito e políticas públicas, pós-graduado em direito penal e controle social, coordenador do NISP – Novas Ideias em Segurança Pública, faixa preta de jiu jitsu e autor do livro: Plea Bragaining?! Debate legislativo – Procedimento abreviado pelo acordo de culpa.

Micael Jardim, professor, MBA, mestre em administração de empresas e doutor em finanças. Com mais de 10 anos de experiência em educação, dedica-se ao ensino e à orientação acadêmica, ajudando alunos em suas trajetórias de aprendizado e pesquisa. Fundador da Lingualize, uma plataforma especializada no ensino de inglês para executivos brasileiros.

Redes Sociais: @joaorenato.br / @micaeljardim

Autor

Horas
Minutos
Segundos
Estamos ao vivo